Anne Guimarães[1]
“Sabe-se pouco da história indígena: nem a origem nem as cifras de população são seguras, muito menos o que realmente aconteceu. Mas progrediu-se, no entanto: hoje está mais clara, pelo menos, a extensão do que não se sabe. Os estudos de casos existentes na literatura são fragmentos de conhecimento que permitem imaginar mas não preencher as lacunas de um quadro que gostaríamos fosse global. Permitem também, e isso é importante, não incorrer em certas armadilhas”
(CUNHA, 2012, p. 11).
Ao se falar em Terras Indígenas (TIs), no Brasil, há que se ter em mente, em primeiro lugar, a definição e alguns conceitos jurídicos materializados na CF/88 e também na legislação específica, em especial no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), que está sendo revisto pelo Congresso Nacional.
A nossa Carta Magna consagrou o princípio de que os indígenas são os primeiros e naturais senhores da terra. Assim é que Cunha (2012, p. 110) afirma que “os direitos específicos dos índios fundamentam-se numa situação histórica igualmente específica: eles eram os senhores destas terras antes dos colonizadores”. Esta é a fonte primária de seu direito, anterior a qualquer outro. Neste sentido, o direito dos povos indígenas a uma terra determinada independe de reconhecimento formal.
A definição de “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” encontra-se no parágrafo primeiro do artigo 231 da CF/88: são aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seu usos, costumes e tradições”.
No artigo 20, XI, também da CF/88, está estabelecido que essas terras são bens da União, sendo reconhecidos aos índios a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (art. 231, § 2º, CF/88).
Ademais, também por força da Constituição, o Poder Público está obrigado a promover tal reconhecimento. Sempre que uma comunidade indígena ocupar determinada área nos moldes do artigo 231, o Estado terá que delimitá-la e realizar a demarcação física dos seus limites. A própria Constituição estabeleceu um prazo para a demarcação de todas as TIs: 5 de outubro de 1993. Contudo, isso não ocorreu e as TIs, no Brasil, encontram-se em diferentes situações jurídicas (PIB, online).
Em tempos de tanta polarização, ódio político, intolerância e disseminação de fake News, importante destacar que os povos indígenas têm direito a seus territórios por motivos históricos. Entretanto, tais direitos não devem ser pensados como um empecilho para o resto do país: “ao contrário, são pré-requisito da preservação de uma riqueza ainda inestimada mas crucial” (CUNHA, 2012, p. 135). Cunha continua mencionando que o que se deve procurar “é dar as condições para que essa riqueza não se perca” (2012, p. 135).
Na contramão da necessidade de conservação de toda essa riqueza biológica, grande parte dos TIs no Brasil sofre invasões de garimpeiros, caçadores, madeireiras e posseiros. Outros são cortados por estradas, ferrovias, linhas de transmissão ou têm porções inundadas por usinas hidrelétricas. A questão mineral está mais viva do que nunca e provavelmente na origem das investidas contra os direitos indígenas à terra e à territorialidade, como é o caso do Projeto de Lei nº 191/2020, que foi assinado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para permitir garimpo e outras explorações industriais em terras indígenas.
O modelo desenvolvimentista neoextrativista somado ao capitalismo neoliberal resultam em custos socioambientais que fazem com que as populações tradicionais, incluindo os povos indígenas, colham resultados perversos os quais acabam pondo em risco (mais uma vez) sua própria sobrevivência: poluição de rios por agrotóxicos e minérios, desmatamentos etc.
A luta indígena, portanto, tem reivindicações concretas: que sejam respeitados os direitos coletivos sobre suas terras e o usufruto exclusivo de suas riquezas; que possam decidir sobre o futuro e participar das decisões que os afetam; que sejam reconhecidos seus direitos à organização e a canais de representação (CUNHA, 2012, p. 115).
Diante de um cenário multifacetado, marcado por uma crise civilizatória que põe em xeque os limites do planeta, interessa recuperar as lições dos saberes indígenas, mais ainda, torna-se urgente a reconfiguração dos imaginários urbanos para além da visão desenvolvimentista. É preciso pensar em alternativas democráticas que respeitem a “sociobiodiversidade” a partir de ideias surgidas de grupos tradicionalmente marginalizados, excluídos, explorados e até mesmo dizimados.
Sabe-se, todavia, que esta tarefa é desafiadora, pois depende de descolonização intelectual nos âmbitos político, social, econômico e, claro, cultural (ACOSTA, 2016), o que perpassa necessariamente por conhecer o passado, o presente e o futuro dos povos indígenas do Brasil.
REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 30 mar. 2023.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. 1. ed. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
POVOS INDÍGENAS NO BRASIL – PIB. O que são Terras Indígenas? Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/O_que_s%C3%A3o_Terras_Ind%C3%ADgenas%3F. Acesso em: 29 mar. 2023.
[1] Especialista em Direito Público pela ASCES/UNITA. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Transdisciplinares sobre Meio Ambiente, Diversidade e Sociedade (GEPT/UPE/CNPq) e do Programa Direitos em Movimento (DIMO/UPE). Professora da Faculdade Conceito Educacional (FACCON). Advogada. E-mail: annegabrieleguimaraes@gmail.com